Saturday, September 16, 2006

Haiku 3

The original instrument
Na primeira fotografia que se conhece de Hitler, um grupo de pessoas que passa observa-o numa esquina. O seu aspecto é banal, sem prenúncios de grandeza ou importância. Não tem dinheiro, emprego, estatuto ou influência, apenas a pulsante experiência das trincheiras e a mais discreta, mais terrível das armas: a voz.
Pouco mais que uma voz... É assim que o Marlow de Conrad descreve Kurz, cujo corpo parece resumido a uma inquieta mala de viagens, carregando para todo o lado, para o “coração das trevas”, aquele hipnótico vestígio de excepção. Também Marlow fica subjugado pelo canto de “grandes coisas”, dos vastos projectos amolecidos pelo destino que lhe cabe testemunhar. Quando morre, Kurz desaparece ainda mais completamente que os homens vulgares, deixando um imenso espaço mudo de futuro, sem objectos, sem registo.
Enquanto relata a sua assombração aos companheiros de viagem, também Marlow é unicamente isso, uma voz perfurante. Ou mais ainda. Como na sugestão diabolizada d “Os Suspeitos do Costume”, nada nos garante que Kurz e Marlow não sejam afinal a mesma pessoa, que Kurz não seja pura criação e que seja Marlow o verdadeiro sacerdote da palavra, disfarçado num invólucro insuspeito, exercendo nos marinheiros o mesmo fascínio que descrevera nos indígenas fiéis a Kurz.
Não é a voz que comanda a vontade, como a da irmandade feminina em Dune, mas a que conduz a imaginação humana como um persistente e vagaroso delírio, reproduzindo a uma escala modesta as invenções do próprio Deus que, por não poder ser contemplado, se manifesta sobretudo enquanto som e fúria na cabeça dos homens.

Sunday, September 10, 2006

Caderno Diário 1

From Russia with love
30 mil mortos foi o que custou erguer S. Petersburgo dos pântanos; um preço insignificante para Pedro o Grande, visto que eram apenas camponeses. Foi lá perto que estudou Púchkin, no Lycée construído pelo czar para formar burocratas de elite, e que ao invés se destacou por formar poetas e revolucionários. Púchkin, que é tão parte da identidade nacional como a vodka, tinha afinal sangue africano, e o temperamento mais insurrecto do seu tempo. A mãe repudiou-o, e Púchkin vingou-se nas mulheres que foi coleccionando. Aluno brilhante, de memória invulgar, era viciado no jogo, como tantos escritores desse país, e um apaixonado por ballet, onde apreciava em particular as pernas das senhoras. Gostava também de duelos, que praticava com assiduidade, desafiando até admiradores, e para os quais se treinava andando sempre com pesos na mão atiradora.
Quando é preso por incitações subversivas, aplicam-lhe o castigo tradicional para os génios da cultura naquele país: viagem paga para reeducação privada, visando transformá-lo num servidor do estado. Nesse exílio doméstico passeia a sua extravagância enquanto pratica a palavra e a sedução. Juntando doses perfeitas de francês, eslavo e russo coloquial, praticamente inventou a língua russa, escancarando a porta para a grande literatura que se seguiu. Proclamava-se o Mozart do séc. XIX, e também nisso tinha razão.

Gimnopédicas 1

Adivinhem os nomes
Apanhei o programa no fim e já só vi quatro pianistas, sem apocalipse.
O primeiro tinha ar de talhante brutificado, mãos grossas de lenhador, expressão vagamente malévola embora revestida de misteriosa santidade, e intimidava com a sua energia os maestros com quem trabalhava. Gostava de tocar para o povo, viajando com a comitiva para exibições campestres de humilde genialidade, e prova disso é que tocou na aldeia de Portugal mesmo antes de morrer. Vê-lo tocar é confirmar esta como a maior proeza atlética do ser humano. Se o que Edward Bond disse (que quando Einstein pensa não é mais do que um símio evoluído, mas quando toca violino, ainda que mal, então é já humano) faz sentido, então ver os grandes pianistas em acção é assistir a uma espécie de realização máxima de humanidade.
O segundo é quase o oposto. Recluso, quase invisível, de uma vaidade monástica, acreditava descender de S. Francisco de Assis. Tinha reportório reduzido, gravava pouco e ainda menos se apresentava em público, existindo quase como um fantasma musical que nunca falhava uma nota. Ao piano parecia uma estátua com dedos animados pelos deuses, gerando sublimidades instantâneas com o rigor natural de uma segunda respiração. Pollini retirou-se para ser seu aluno e aprender-lhe os segredos.
O terceiro fez da reclusão uma arte. Se o anterior não errava uma nota, para muitos este errava-as quase todas. Era friorento, espartano, alimentando-se de chá, torradas e ovos mexidos. Nunca tocou Schumann, Liszt e Chopin, que achava compositores imprestáveis, e os outros cantarolava-os ruidosamente, para desespero dos técnicos de som que praticamente constituíam o seu único público. No programa aparece num concerto com Bernstein a dirigir. Estão apropriadamente de costas voltadas, pois sempre que tocaram juntos a coisa correu mal. Ele toca para si, e a orquestra que não incomode muito. O que se vê é um Bernstein aflito, que conduz como pode o barco sugado pela tormenta de um homem só, essa força natural que Thomas Bernhard pôs em livro para transformar a vida de dois amigos.
O quarto tinha garras de fera, domesticadas ao serviço da mensagem que observava com devoção. Um latino apaixonado por todas as coisas alemãs, e o último dos grandes a reportar directamente a Liszt. Quando o pano cai e a música desaparece, a dança de dedos continua, num infinito palco de marfim.

Thursday, September 07, 2006

Haiku 2

R.I.P.
Tal como os fragmentos da Santa Cruz que enfeitam os relicários da cristandade, também as amostras cerebrais de Kennedy, supostamente recolhidas na autópsia, e muito cobiçadas no mercado de “lembranças” anatómicas, sobretudo por americanos ricos e semi-analfabetos, se colocadas todas juntas, encheriam um camião. Imaginam-se comentários de especialistas: “uma vasta inteligência”.
Outras curiosidades: há mais de mil dedos de Hitler no mercado (um para dirigir cada ano do Reich-que-não-chegou-a-ser, talvez); na China estas relíquias são utilizadas em preparados farmacêuticos de vocação afrodisíaca.
Rest in Pieces, de facto.

Haiku 1

Dois narizes para Casanova.
Em criança sangrava abundantemente do nariz e não se esperava que vivesse muito tempo. Contrariando as expectativas, curou-se e resolveu trocar, de um salto, o nariz sangrento da doença pelo grande nariz veneziano. Viveria sempre em permanente Carnaval, num perpétuo festim de audácias e prazeres, conquistados àquela morte anunciada.

Sunday, September 03, 2006

No Museu 1

“Where not to be seen: at a Happening”.
Parece frase roubada ao Flying Circus mas é o que dizia a revista Esquire em 1966, quando a moda começava a cansar. Allan Kaprow, que os livros acusam de os ter inventado, também se cansou, mudando-lhes o nome para “Activities” e praticando-os fora do circuito artístico, de que se dizia estrangeiro.
Uma acção de Kaprow: instruir o funcionário de uma galeria a pegar num regador e molhar o passeio todos os dias antes da sua abertura. Sem aviso ou qualquer espécie de documentação, o acontecimento ganhava a visibilidade própria da poeira, ou de um insecto no jardim. Outros microeventos programados incluíam manter um sorriso por muito tempo; dar dinheiro ao parceiro; trocar beijos e outras gesticulações mínimas, executadas como vagarosos exercícios de meditação.
Fiel até ao fim aos princípios da subtileza aplicada, Allan Kaprow morreu em Abril, e o mundo, mais uma vez, parece não ter reparado neste “acontecimento”.
Em jeito de homenagem (só porque sim), fica a sugestão espontânea de possíveis microeventos ao alcance de qualquer um. É fácil, não custa nada, e parece que é arte.
- Parar e rodar sobre si próprio sempre que se cruzar com gémeos.
- Dizer alto o nome de quem se gosta sempre que um casal se beije em público.
- Desatar os cordões e atá-los outra vez quando ouvir um telemóvel com o mesmo toque que o seu.
- Escrever num papel o nome de todas as personagens do filme que acabou de ver no cinema.
Aceitam-se outras sugestões, que o senhor merece…