Saturday, September 16, 2006

Haiku 3

The original instrument
Na primeira fotografia que se conhece de Hitler, um grupo de pessoas que passa observa-o numa esquina. O seu aspecto é banal, sem prenúncios de grandeza ou importância. Não tem dinheiro, emprego, estatuto ou influência, apenas a pulsante experiência das trincheiras e a mais discreta, mais terrível das armas: a voz.
Pouco mais que uma voz... É assim que o Marlow de Conrad descreve Kurz, cujo corpo parece resumido a uma inquieta mala de viagens, carregando para todo o lado, para o “coração das trevas”, aquele hipnótico vestígio de excepção. Também Marlow fica subjugado pelo canto de “grandes coisas”, dos vastos projectos amolecidos pelo destino que lhe cabe testemunhar. Quando morre, Kurz desaparece ainda mais completamente que os homens vulgares, deixando um imenso espaço mudo de futuro, sem objectos, sem registo.
Enquanto relata a sua assombração aos companheiros de viagem, também Marlow é unicamente isso, uma voz perfurante. Ou mais ainda. Como na sugestão diabolizada d “Os Suspeitos do Costume”, nada nos garante que Kurz e Marlow não sejam afinal a mesma pessoa, que Kurz não seja pura criação e que seja Marlow o verdadeiro sacerdote da palavra, disfarçado num invólucro insuspeito, exercendo nos marinheiros o mesmo fascínio que descrevera nos indígenas fiéis a Kurz.
Não é a voz que comanda a vontade, como a da irmandade feminina em Dune, mas a que conduz a imaginação humana como um persistente e vagaroso delírio, reproduzindo a uma escala modesta as invenções do próprio Deus que, por não poder ser contemplado, se manifesta sobretudo enquanto som e fúria na cabeça dos homens.

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