Sunday, September 10, 2006

Gimnopédicas 1

Adivinhem os nomes
Apanhei o programa no fim e já só vi quatro pianistas, sem apocalipse.
O primeiro tinha ar de talhante brutificado, mãos grossas de lenhador, expressão vagamente malévola embora revestida de misteriosa santidade, e intimidava com a sua energia os maestros com quem trabalhava. Gostava de tocar para o povo, viajando com a comitiva para exibições campestres de humilde genialidade, e prova disso é que tocou na aldeia de Portugal mesmo antes de morrer. Vê-lo tocar é confirmar esta como a maior proeza atlética do ser humano. Se o que Edward Bond disse (que quando Einstein pensa não é mais do que um símio evoluído, mas quando toca violino, ainda que mal, então é já humano) faz sentido, então ver os grandes pianistas em acção é assistir a uma espécie de realização máxima de humanidade.
O segundo é quase o oposto. Recluso, quase invisível, de uma vaidade monástica, acreditava descender de S. Francisco de Assis. Tinha reportório reduzido, gravava pouco e ainda menos se apresentava em público, existindo quase como um fantasma musical que nunca falhava uma nota. Ao piano parecia uma estátua com dedos animados pelos deuses, gerando sublimidades instantâneas com o rigor natural de uma segunda respiração. Pollini retirou-se para ser seu aluno e aprender-lhe os segredos.
O terceiro fez da reclusão uma arte. Se o anterior não errava uma nota, para muitos este errava-as quase todas. Era friorento, espartano, alimentando-se de chá, torradas e ovos mexidos. Nunca tocou Schumann, Liszt e Chopin, que achava compositores imprestáveis, e os outros cantarolava-os ruidosamente, para desespero dos técnicos de som que praticamente constituíam o seu único público. No programa aparece num concerto com Bernstein a dirigir. Estão apropriadamente de costas voltadas, pois sempre que tocaram juntos a coisa correu mal. Ele toca para si, e a orquestra que não incomode muito. O que se vê é um Bernstein aflito, que conduz como pode o barco sugado pela tormenta de um homem só, essa força natural que Thomas Bernhard pôs em livro para transformar a vida de dois amigos.
O quarto tinha garras de fera, domesticadas ao serviço da mensagem que observava com devoção. Um latino apaixonado por todas as coisas alemãs, e o último dos grandes a reportar directamente a Liszt. Quando o pano cai e a música desaparece, a dança de dedos continua, num infinito palco de marfim.

1 Comments:

Blogger bacondog said...

O terceiro pianista será Glenn Gould? Os outros nem imagino!!
(Esta é muito difícil, tens de deixar mais pistas...)

4:16 AM  

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