Saturday, December 30, 2006

Panópticos 2

Canto de cisne
A cena é justamente famosa
. Norma Desmond desce a escada do palácio para devolver-se inteira aos admiradores carentes, na derradeira manipulação do mordomo Max, o enigmático ex-marido e responsável pela laboriosa ficção que transportou para Sunset Boulevard. É uma Salomé enlouquecida na própria sedução que avança lentamente por entre corpos paralisados de espanto. O movimento sugere, pelo menos, duas coisas: Norma passeia como vedeta maior entre estátuas de cera no decadente museu que se tornou a mansão, e entrega-se ao mordomo que, pela última vez, dirige aquela por quem sacrificou a própria glória. É um gesto terminal para ambos, pungente e libertador. O tempo parou e Norma avança perante os mesmos figurantes do passado, técnicos de celulóide e inconfidências. O seu é um tempo exclusivo, enquanto a mansão é toda uma privada sala de cinema, a que os silêncios de Max e os rostos mortos nas molduras emprestam a legitimidade necessária: o caixão onde, junto com o cinema mudo, Norma se enterrou a si própria. Se Max repete que Norma é a maior das estrelas é tanto por genuíno amor de uma doença como para justificar a sua abdicação canina, que encontrara nela a forma material de um filme contínuo, uma secreta obra de arte, luxuosa e desértica, com protagonistas que são, ao mesmo tempo, espectadores do próprio cinema que fazem e habitam.
Enquanto desce calada, Norma é ainda digna, apesar de louca. Quando confessa a sua alegria aos presentes, é apenas um vestígio de algo irremediavelmente perdido.
Duas curiosidades: Gloria Swanson faz de Norma Desmond e o nome quase anuncia um programa (swan song, o adeus ao mudo, ou a uma forma mais a(pura)da de fazer cinema). O mordomo lembra o cão-robot de Nick Park em A close shave.

Wednesday, December 20, 2006

Miniaturas (6-10)


6. − Quando quero ouvir a voz de um fantasma – disse ela – apago as luzes, sento-me no sofá e ponho um disco da Nico; um qualquer. E tu?
− Eu, fecho os olhos e venho ter contigo – respondeu.

7. Já perdera a conta das vezes que os seus amigos haviam falado daquele lugar, das suas exóticas maravilhas, das novas aventuras em cada viagem. E continuava a ouvi-los com a discreta felicidade de quem quase aflora o paraíso. Não dizia a ninguém, mas tinha a certeza de ser esse o único lugar que jamais visitaria.

8. Era uma vez um príncipe que vivia num grande castelo, cheio de príncipes e princesas. Os criados eram todos príncipes como ele, os soldados, os agricultores, os padres eram também príncipes, e tudo em redor prosperava com tanta realeza. O conselheiro do príncipe, por seu lado, não era príncipe, mas um cão vadio e meigo, que no seu triste deserto de pêlo escondia, entre as pulgas, um pequeno planeta azul onde existiam também alguns príncipes, todos conselheiros de gigantescos, patéticos palácios vazios.

9. Ela disse: quando morrer vou brincar aos legos no outro lado. Cada peça uma cidade, uma viagem, um desejo. Sorriu com a certeza de não ser compreendida; e vagueava já na perspectiva mental de bizarros monumentos quando o Chapeleiro a interrompeu, irritado com a falta de maneiras. O chá estava quase frio! (para a G.)

10. Aquelas mãos recortando formas redondas no ar estavam sempre presentes, mesmo no escuro e no silêncio, entre vapores. Não conseguia esquecer o filme e o destino da mulher, que escolhera morrer no momento de maior felicidade. Apaixonar-se passou a ser a coisa que mais temia no mundo.

Tuesday, December 12, 2006

Miniaturas (1-5)


1. Como era vegetariano, aprendeu a linguagem das plantas para ter sempre com quem falar às refeições.

2. Já não se lembrava da razão, e a ninguém alguma vez ocorrera perguntar. Mas continuava a comparecer, quinze anos depois, naquele sítio, àquela hora, uma vez por ano. E só nessa altura (não tinha a certeza) via aquelas caras já familiares, como ele arrastadas para um momento de vazio absoluto, de sibilante paralisia que parecia autorizá-los a viver outro ano. Sabia que se deixasse de aparecer estaria morto.

3. Juntar a citação de Benjamin e o riso de Kafka num projecto de vida. Repetiria tudo que os maiores pensaram antes de si, querendo dizer exactamente o contrário.

4. Lera nos livros que Midas fora o mais trágico milionário, e desde então passara a usar luvas todo o dia. Era muito sensível à poesia dos grandes mitos, e a poesia era toda a riqueza que possuía.

5. Um cuidado extremo nos objectos que tocava, na escolha de ruas que percorria, nos reflexos e montras que ousava espreitar. Tudo em si era importante, excepto a vontade de ser descoberto.

Monday, December 11, 2006

Mortes exemplares 3


A música sou eu
É bem sabido que há gente capaz de tudo para ter sucesso, e com artistas não é diferente.
Para poder ser preferido do rei e ditador musical de Versailles, Lully não se coibiu de eliminar (literalmente) alguma da concorrência, assistido pela vontade de copiar à sua maneira o deus Sol. Tanta soberba terá incomodado um Deus ainda maior, decidido a enfurecer o bastão com que Lully orientava a orquestra e brindá-lo com um requiem podiátrico.
Num concerto real, sentado numa cadeira frente aos músicos, Lully batia o compasso com um afiado bastão dourado como bom italiano que era: cheio de vigor e pontaria. Até que acerta no pé, faz ferida e morre da infecção uns dias depois.