Sunday, October 08, 2006

Panópticos 1


Harry de A a Z
Numa cena campestre ao entardecer, quatro personagens caminham em direcção à câmara quando ouvem um barulho indefinido. A câmara continua com eles, parados, enquanto especulam à vez sobre a causa do ruído, chegando a quatro interpretações totalmente diferentes, cheias de dramatismo e despropósito, numa situação que se imagina preparada por Borges (Rashomon Andalou…), cheia de implicações epistemológicas e variações perceptuais. Um plano picado mostra afinal uma quinta personagem que se dirige para o grupo, no mais inofensivo dos movimentos, em perfeito anti-clímax, logo subvertido pela espectacular notícia que traz. Este é o tipo de gincana narrativa de The trouble with harry, a comédia que Hitchcock sempre quis fazer.
As aventuras de um cadáver em Vermont não seduziram o povo americano, e foi na Europa (talvez mais habituada a enterrar corpos e rir-se da sua história) que Hitchcock recuperou o investimento. Depois do claustrofóbico Rear Window, Harry aparece como um exercício de humor negro au campagne, sublinhado com infalível precisão pela música de Herrmann, desnovelando-se também como um subtil catálogo do riso. Alguns exemplos: a literalidade (Sam pede metade dos cigarros e corta-os com uma tesoura); a alienação (o médico que lê poesia pelos montes e tropeça duas vezes no corpo sem reparar); a ligeireza (a solenidade funerária virada do avesso; o casamento irrisório); a repetição (o corpo sucessivamente enterrado e desenterrado; o professor distraído; a porta que se abre 3 vezes); o deslocamento (o “génio” na aldeia; o engate diante do morto); o previsível (o desfile de personagens que vai tropeçando no corpo, observados pelo capitão que o julga ter morto − é o mundo inteiro que vem prestar a última homenagem); o imprevisível (é a solteirona Gravely que desenterra o morto em vez do capitão); o diálogo picante (entre Sam e a recém-viúva-futura-noiva); o subentendido (as expectativas românticas de Gravely e o capitão); o inverosímil (o génio renuncia à fortuna e transforma o milionário num merceeiro de Natal); a mentira recíproca (Gravely e o capitão adocicando o passado); o jogo de linguagem (a concepção temporal do pequeno Arnie); o lapso freudiano (Arnie que é, para Sam, alternadamente fedelho e filho querido), o puramente gráfico (os planos invulgares do corpo); etc.
Se Mr and Mrs Smith é um escorrega molhado num parque de diversões metropolitano, The trouble with Harry é uma escada rolante que sobe e desce arbitrariamente os montes outonais do Vermont, onde por esta altura talvez ainda haja um corpo com problemas…

Eu não estive aqui, eu não vi isto 1

Fragmentos - Beckett
Passaram muitos anos. Talvez. Fora daquela câmara de tortura seguiram as suas vidas, mais ou menos como previsto, esgotando uma a uma todas as faculdades que os admitiam ainda no meio da espécie. No essencial nada mudou, excepto o conforto de caminharem juntos para o sossego (ideia proposta novamente, para falhar, falhar sempre) que deixou de existir. Tornaram-se miseravelmente sós, debaixo do céu. Hamm perdeu uma perna, não se sabe como, enfiou-se num buraco à espera de outro como ele, com voz e movimento, para não morrer sozinho, ou melhor ainda, para ter quem espezinhar no seu desgosto. Esperou muito e tanto se habituou à espera que a presença de Clov, cego não se sabe como, e que parece primeiro a possibilidade de salvação derradeira, de reconciliação com os homens, não tarda a incomodar. Bate-lhe e arrepende-se. Choraminga, talvez com sinceridade, mas o impulso dominador, cínico, verrinoso, de velho consumido frustra o plano de sociedade, cava a distância previsível, absurda. Talvez não consigam abandonar-se um ao outro (e o divertido que pode ser fabricar o futuro dos personagens), no entanto condenam-se a multiplicar em conjunto o sofrimento que já antes suportavam. A dor quer uma plateia atenta, quer companhia para se saborear plenamente. Em tempos, Clov quis revoltar-se, deixar o patrão, tocar violino num beco qualquer, sobreviver em música e sujidade. Ser guiado por uma mão de fêmea. É mais doce quando é uma mulher a agredir. Esgotou o sonho de liberdade no mundo vazio e foi parar à toca do patrão, que mantém intacta a capacidade de ferir, mesmo que isso o fira também. É disso que se ri, que riem em conjunto, para eles. Hamm é perverso por tristeza e fastio, não por maldade, e Clov é submisso por ser essa a sua maneira de amar. A luz apaga e eles param a agressão para agradecer o aplauso. Depois continuam a matar-se devagarinho, para se sentirem quentes ainda. É o seu segredo. Hamm, Clov ou outros iguais.
Fim de partida, outra vez.

Tuesday, October 03, 2006

Mortes exemplares 2

A última fuga
É considerável a quantidade de artistas que morreu na plena execução do seu ofício, como se levando ao extremo uma particular sensibilidade que o corpo muitas vezes cansado não consegue já dominar. Uma sensibilidade do género que fazia Teresa Stich-Randell admitir que, quando cantava Bach, sofria de beleza.
Foi a pensar no cravo bem-temperado de Bach que Shostakovitch escreveu o seu conjunto de prelúdios e fugas, dedicando-o a Tatiana Nikolayeva, vencedora num concurso de piano por si presidido tocando justamente essa obra de Bach. A emoção acumulada deve ter sido muito grande, porque a grande pianista russa morreu em plena interpretação dos prelúdios e fugas que havia inspirado e estreado tanto tempo antes. Foi num concerto público em São Francisco a 13 de Novembro de 1993. Nessa noite não houve encore.

Mortes exemplares 1

Do contra
Sujeito de hábitos mecânicos já célebres na cidade, Henrik Ibsen frequentava o mesmo café, acompanhado da mulher, com a pontualidade glacial de uma personagem dramática. Fê-lo até aos últimos dias, mesmo quando estava já bastante doente. Num desses dias, um amigo, vendo-o especialmente prostrado, pergunta à mulher se ele se tem sentido pior. Ibsen levanta-se intempestivo e diz: “pelo contrário”! E depois morre.