Sunday, October 08, 2006

Eu não estive aqui, eu não vi isto 1

Fragmentos - Beckett
Passaram muitos anos. Talvez. Fora daquela câmara de tortura seguiram as suas vidas, mais ou menos como previsto, esgotando uma a uma todas as faculdades que os admitiam ainda no meio da espécie. No essencial nada mudou, excepto o conforto de caminharem juntos para o sossego (ideia proposta novamente, para falhar, falhar sempre) que deixou de existir. Tornaram-se miseravelmente sós, debaixo do céu. Hamm perdeu uma perna, não se sabe como, enfiou-se num buraco à espera de outro como ele, com voz e movimento, para não morrer sozinho, ou melhor ainda, para ter quem espezinhar no seu desgosto. Esperou muito e tanto se habituou à espera que a presença de Clov, cego não se sabe como, e que parece primeiro a possibilidade de salvação derradeira, de reconciliação com os homens, não tarda a incomodar. Bate-lhe e arrepende-se. Choraminga, talvez com sinceridade, mas o impulso dominador, cínico, verrinoso, de velho consumido frustra o plano de sociedade, cava a distância previsível, absurda. Talvez não consigam abandonar-se um ao outro (e o divertido que pode ser fabricar o futuro dos personagens), no entanto condenam-se a multiplicar em conjunto o sofrimento que já antes suportavam. A dor quer uma plateia atenta, quer companhia para se saborear plenamente. Em tempos, Clov quis revoltar-se, deixar o patrão, tocar violino num beco qualquer, sobreviver em música e sujidade. Ser guiado por uma mão de fêmea. É mais doce quando é uma mulher a agredir. Esgotou o sonho de liberdade no mundo vazio e foi parar à toca do patrão, que mantém intacta a capacidade de ferir, mesmo que isso o fira também. É disso que se ri, que riem em conjunto, para eles. Hamm é perverso por tristeza e fastio, não por maldade, e Clov é submisso por ser essa a sua maneira de amar. A luz apaga e eles param a agressão para agradecer o aplauso. Depois continuam a matar-se devagarinho, para se sentirem quentes ainda. É o seu segredo. Hamm, Clov ou outros iguais.
Fim de partida, outra vez.

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