Eu não estive aqui, eu não vi isto 1
Fragmentos - Beckett
Passaram muitos anos. Talvez. Fora daquela câmara de tortura seguiram as suas vidas, mais ou menos como previsto, esgotando uma a uma todas as faculdades que os admitiam ainda no meio da espécie. No essencial nada mudou, excepto o conforto de caminharem juntos para o sossego (ideia proposta novamente, para falhar, falhar sempre) que deixou de existir. Tornaram-se miseravelmente sós, debaixo do céu. Hamm perdeu uma perna, não se sabe como, enfiou-se num buraco à espera de outro como ele, com voz e movimento, para não morrer sozinho, ou melhor ainda, para ter quem espezinhar no seu desgosto. Esperou muito e tanto se habituou à espera que a presença de Clov, cego não se sabe como, e que parece primeiro a possibilidade de salvação derradeira, de reconciliação com os homens, não tarda a incomodar. Bate-lhe e arrepende-se. Choraminga, talvez com sinceridade, mas o impulso dominador, cínico, verrinoso, de velho consumido frustra o plano de sociedade, cava a distância previsível, absurda. Talvez não consigam abandonar-se um ao outro (e o divertido que pode ser fabricar o futuro dos personagens), no entanto condenam-se a multiplicar em conjunto o sofrimento que já antes suportavam. A dor quer uma plateia atenta, quer companhia para se saborear plenamente. Em tempos, Clov quis revoltar-se, deixar o patrão, tocar violino num beco qualquer, sobreviver em música e sujidade. Ser guiado por uma mão de fêmea. É mais doce quando é uma mulher a agredir. Esgotou o sonho de liberdade no mundo vazio e foi parar à toca do patrão, que mantém intacta a capacidade de ferir, mesmo que isso o fira também. É disso que se ri, que riem em conjunto, para eles. Hamm é perverso por tristeza e fastio, não por maldade, e Clov é submisso por ser essa a sua maneira de amar. A luz apaga e eles param a agressão para agradecer o aplauso. Depois continuam a matar-se devagarinho, para se sentirem quentes ainda. É o seu segredo. Hamm, Clov ou outros iguais.
Fim de partida, outra vez.
Passaram muitos anos. Talvez. Fora daquela câmara de tortura seguiram as suas vidas, mais ou menos como previsto, esgotando uma a uma todas as faculdades que os admitiam ainda no meio da espécie. No essencial nada mudou, excepto o conforto de caminharem juntos para o sossego (ideia proposta novamente, para falhar, falhar sempre) que deixou de existir. Tornaram-se miseravelmente sós, debaixo do céu. Hamm perdeu uma perna, não se sabe como, enfiou-se num buraco à espera de outro como ele, com voz e movimento, para não morrer sozinho, ou melhor ainda, para ter quem espezinhar no seu desgosto. Esperou muito e tanto se habituou à espera que a presença de Clov, cego não se sabe como, e que parece primeiro a possibilidade de salvação derradeira, de reconciliação com os homens, não tarda a incomodar. Bate-lhe e arrepende-se. Choraminga, talvez com sinceridade, mas o impulso dominador, cínico, verrinoso, de velho consumido frustra o plano de sociedade, cava a distância previsível, absurda. Talvez não consigam abandonar-se um ao outro (e o divertido que pode ser fabricar o futuro dos personagens), no entanto condenam-se a multiplicar em conjunto o sofrimento que já antes suportavam. A dor quer uma plateia atenta, quer companhia para se saborear plenamente. Em tempos, Clov quis revoltar-se, deixar o patrão, tocar violino num beco qualquer, sobreviver em música e sujidade. Ser guiado por uma mão de fêmea. É mais doce quando é uma mulher a agredir. Esgotou o sonho de liberdade no mundo vazio e foi parar à toca do patrão, que mantém intacta a capacidade de ferir, mesmo que isso o fira também. É disso que se ri, que riem em conjunto, para eles. Hamm é perverso por tristeza e fastio, não por maldade, e Clov é submisso por ser essa a sua maneira de amar. A luz apaga e eles param a agressão para agradecer o aplauso. Depois continuam a matar-se devagarinho, para se sentirem quentes ainda. É o seu segredo. Hamm, Clov ou outros iguais.
Fim de partida, outra vez.
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