Sunday, February 18, 2007

Panópticos 4


A fórmula de Zeus/ O senhor Bradbury

Uma casa grande, enorme, na verdade interminável, com milhares de quartos dispostos de forma simples em redor de um hall esférico, comparativamente minúsculo, através do qual se tem acesso directo a cada uma das divisões e, também, por onde se entra na própria casa.

Nessa casa apenas um quarto é habitado, por uma família numerosa, normalmente escondida, onde a estrutura de classes é, ainda assim, flagrante; ou então muitos quartos estão ocupados, quase todos, adivinha-se, porque é impossível ver a totalidade dos compartimentos, apenas se assume que eles existem na sequência de um padrão estabelecido. Mas todos esses ocupantes são gémeos, e da parte inferior do escalão social, entre o escravo e o operário manual. E num único quarto, o que tem a decoração ridícula e luzes que piscam em cristais coloridos, vive o dono da casa, o benévolo/ malévolo chefe supremo, que num canto manipula, de vez em quando, uma máquina (que observadores tendenciosos tenderão a comparar com um altar) onde regula, alimenta, controla toda a casa, como se comandando um prodigioso coração mecânico, moderno e vulnerável, que bombeia energia por artérias subterrâneas a pedido do mestre. E é um coração caprichoso, a exigir atenções bizarras (os observadores reconhecerão uma camuflada estrutura ritual).

Por mero acaso chega um visitante. Entra no hall e, de milhares de quartos indistintos escolhe entrar no único habitado, ou então no quarto principal onde o rei brinca com os botões. E apesar da casa ser enormíssima, o rei, ele próprio, usando misteriosos candeeiros na cabeça e desconhecendo aparentemente elementares noções de protocolo, mesmo que exibindo uma sobranceria típica de Oxford e consequente mania das grandezas, recebe a visita num apertado recanto do quarto, onde se vê a máquina alimentadora (o quadro eléctrico, basicamente) e se dá a entender que, apesar de muito vastos e numerosos, todos os quartos, vazios ou com hordas de gémeos paralíticos, são exactamente iguais, embora sem tantas luzes bruxuleantes. Entendem-se logo sem fazer perguntas, e marca-se jantar para dali a bocado, onde se provará que a culinária local é igual às outras, excepto que servida em pratos que cantam.

Ali o senhor da casa pedirá ao visitante que se sacrifique após a sobremesa para alimentar a máquina, salvando o condomínio, constantemente ameaçado de que lhe seja cortada a electricidade, ou que arranje a avaria no quadro (suspeitamos que seja o fusível), pois há muito se perderam os alicates naquele espaço. O visitante ora abandona desagradado o jantar e parte, causando a explosão do edifício inteiro (presume-se que em protesto), ou arranja o fusível e tudo acaba em bem – sabemo-lo depois pelo fogo de artifício onde o rosto do ilustre salvador é momentaneamente desenhado no céu. Cansado, o visitante vai embora para nunca mais voltar.

É isto o tricentésimo quinto livro de Gonçalo M. Tavares, ou a fórmula decadente de quase todos os episódios de ficção-científica que se vão vendo por aqui? Você decide.

Haiku 9


Caixinha de surpresas

No princípio, entrar no Smithsonian de Washington era uma aventura inesquecível, uma surpresa constante, uma viagem de descoberta e espanto por entre milhares de objectos reunidos em razoável desarrumação. Esqueletos, máquinas, desenhos, conchas, instrumentos, tudo convivia naquele primeiro edifício numa fascinante desordem que tornava praticável a ilusão de se habitar as entranhas de um gabinete de curiosidades setecentista, graciosamente amplificado para usufruto popular.

Um gabinete era o mundo em miniatura: uma estante para cada continente, uma gaveta para cada espécie, algumas esferas suspensas do tecto, ou então tudo saudavelmente misturado para o simples prazer da novidade.

Nos modelos originais a descoberta era privada, e vivia-se sobretudo nos grandes portos europeus, quando os navios regressavam das Américas carregando no porão fatias manobráveis do novo mundo, recolhidas para coleccionadores impacientes. Por alguns dinheiros levava-se para casa todo o tipo de objectos (na verdade, sobretudo cadáveres) capazes de saciar imaginações febris e fascinar os convidados.

Os navios multiplicaram-se e o mundo cresceu. Os gabinetes de curiosidades também cresceram e depois morreram, para que surgissem os museus, inevitavelmente especializados. E com eles, de certa forma, o fim da aventura.

Friday, February 16, 2007

Haiku 8


América

Há alguns anos atrás Filadélfia era a cidade americana que mais investia em arte pública, cerca de 1% do orçamento. Que o seu Museu de arte seja o maior atractivo local não pelos milhares de pinturas preciosas que alberga mas pela escadaria que Rocky Balboa tornou famosa diz muito sobre aquele país. Excursões diárias prestam vassalagem à sagrada metáfora americana e espezinham contentes a progressiva ascensão mineral sem pôr os pés no edifício. Suponho que a arte agradece a gentileza.

Um pouco menos famosos são os indícios de corrupção que de vez em quando levam grupos inteiros de juízes para a cadeia. Um juiz acusado que não apreciava especialmente a ideia convocou uma conferência de imprensa e, em vez de falar, tirou uma pistola e rebentou a cabeça em directo.

Se fosse hoje faria de certeza o top ten do youtube, e a quadruplicada felicidade póstuma de uma toga em permanente prime time.

God bless...

Haiku 7


E Deus cansado deixou que Adão também criasse

Nos saborosos anos 70, Yves Klein (ou Manzoni?) montou uma exposição com telas totalmente brancas, todas iguais à excepção dos preços (que variavam de forma aleatória) e dos títulos. Por avultada soma de dinheiro qualquer um poderia comprar não a assinatura, mas o título da obra.

A importância dos títulos é pretexto de outra história, talvez apócrifa: Buñuel, entre muitos, fazia os filmes primeiro e apenas no fim lhes dava nome. Quando terminou o “Charme discreto da burguesia” e encontrou este título, disse que nesse preciso instante o filme mudara, passara a ser outra coisa diferente. E é fácil acreditar na verdade.

Enquanto nomear aqui é dar sentido (ao contrário do Ménard de Borges, que vira o sentido com o mesmíssimo texto), para Boris Vian o que interessava era precisamente confundi-lo poeticamente, ou accionar em três palavras o charme discreto da patafísica. Pois é; já se sabe o que acontece a quem os deuses amam…

Na sua inesgotável capacidade de mágico intelectual, Walter Benjamim propõe a ligação estreita entre a palavra original e o objecto; um a extensão intencional do outro. Verdadeira ou não, é uma ideia encantadora. Para os gregos o nome era parte integrante, quase física, das pessoas, traduzia algo de essencial, como se enformasse em som um carácter distinto e irrepetível, desde o início fadado a íntima combinação. É essa espécie de impressão digital que condena Ulisses, num raro momento de vaidade e imprudência quando revela o nome verdadeiro a Polifemo, que assim pode apoderar-se dele e invocá-lo em maldições reclamadas ao pai, o diligente castigador dos oceanos. Ulisses que fora ninguém e se esquecera de o ser, pagará com suplementar errância o ódio de Posídon e a protecção de Zeus.

A acreditar nessa outra Odisseia que é “Lone Wolf and cub”, quase sempre historicamente irrepreensível, existiria algo desse poder e autoridade associado ao nome do guerreiro no bushido. Em situações de potencial conflito, sempre que Ogami Itto revela o nome é para confrontar o adversário em duelo mortal. A isso obriga essa revelação sensível. Tal como o Paul Atreides que mata com a palavra, também aqui o nome é sinónimo de morte.

Thursday, February 15, 2007

Haiku 6




Henry Darger remix

Quando Henry Darger perdeu o recorte com a fotografia de Annie Aronburg, uma menina desaparecida, pediu a Deus que a encontrasse e esperou. Lavava pratos, limpava retretes e rezava, rezava muito, assombrado por vozes que habitavam o quarto. Cinco missas diárias e interpelações directas não lhe devolveram a fotografia, e Darger, zangado com esse Deus objecto de todas as fúrias e devoções, criou uma guerra.

De uma cabeça votada a extremo preconceito e solidão brotaram milhões de soldados, cristãos contra ateus, disputando a escravidão de criancinhas. Como superior estratega no seu massacre literário de quinze mil páginas, Darger organiza e descreve com o mais irracional fervor jornalístico batalhas onde as baixas são astronómicas, as vilezas requintadas e onde o triste espectáculo da sua inexistência é invertido num excesso de cor e ruído que, mais do que um diário de uma vida imaginada, é a própria vida. A posteridade agradece a sua forma dedicada de compensar uma sexualidade reprimida, um genuíno impulso assassino e uma religiosidade confusa com um ilegível relato de atrocidades ilustrado com cândidas aguarelas de guerra, de uma beleza ímpar.

Ocorre pensar no filme de Mallick onde essa mistura quase dói de tão vívida. Enquanto os homens fazem a guerra (levando-nos consigo), o mundo à volta continua, mais ou menos imperturbável, sempre belo, fresco, renovado. Um soldado confessa esse segredo antigo da batalha redescoberto pela milésima vez: matou um homem e ninguém o pode castigar por isso. Matar e copular; destino do macho que vive plenamente o natural projecto de poder. Quem não ousa experimentar pode sempre escrever sobre isso. Esse é o triunfo dos ficcionistas. Eurípides (ou Ésquilo, não me lembro) quis no seu epitáfio ser lembrado como valoroso guerreiro que matou muitos inimigos. Das peças nem uma letra.

Ainda assim o assassínio continua um passatempo prestigiado e um motivo predilecto de escritores (dentro de cada um de nós, um bárbaro algemado…). Afinal Tolstoi e a felicidade ainda ressoam no grande inconsciente comum, ansioso de receber lições de desgosto. A felicidade dos outros pode soar-nos muitas vezes ridícula ou insignificante, enquanto a tragédia (coisas más sucedendo a boa gente) deixa sempre marcas permanentes.

Das três peças gémeas de Ibsen, só nos lembramos de Hedda Gabler porque é a única que se mata. Godard sabe-o muito bem, e trata de matar todos os protagonistas que pode, enquanto Hal Hartley, nos tempos de aluno aplicado, não tem coragem. Por isso lhe agradecemos. E por isso nunca o havemos de perdoar.