Thursday, February 15, 2007

Haiku 6




Henry Darger remix

Quando Henry Darger perdeu o recorte com a fotografia de Annie Aronburg, uma menina desaparecida, pediu a Deus que a encontrasse e esperou. Lavava pratos, limpava retretes e rezava, rezava muito, assombrado por vozes que habitavam o quarto. Cinco missas diárias e interpelações directas não lhe devolveram a fotografia, e Darger, zangado com esse Deus objecto de todas as fúrias e devoções, criou uma guerra.

De uma cabeça votada a extremo preconceito e solidão brotaram milhões de soldados, cristãos contra ateus, disputando a escravidão de criancinhas. Como superior estratega no seu massacre literário de quinze mil páginas, Darger organiza e descreve com o mais irracional fervor jornalístico batalhas onde as baixas são astronómicas, as vilezas requintadas e onde o triste espectáculo da sua inexistência é invertido num excesso de cor e ruído que, mais do que um diário de uma vida imaginada, é a própria vida. A posteridade agradece a sua forma dedicada de compensar uma sexualidade reprimida, um genuíno impulso assassino e uma religiosidade confusa com um ilegível relato de atrocidades ilustrado com cândidas aguarelas de guerra, de uma beleza ímpar.

Ocorre pensar no filme de Mallick onde essa mistura quase dói de tão vívida. Enquanto os homens fazem a guerra (levando-nos consigo), o mundo à volta continua, mais ou menos imperturbável, sempre belo, fresco, renovado. Um soldado confessa esse segredo antigo da batalha redescoberto pela milésima vez: matou um homem e ninguém o pode castigar por isso. Matar e copular; destino do macho que vive plenamente o natural projecto de poder. Quem não ousa experimentar pode sempre escrever sobre isso. Esse é o triunfo dos ficcionistas. Eurípides (ou Ésquilo, não me lembro) quis no seu epitáfio ser lembrado como valoroso guerreiro que matou muitos inimigos. Das peças nem uma letra.

Ainda assim o assassínio continua um passatempo prestigiado e um motivo predilecto de escritores (dentro de cada um de nós, um bárbaro algemado…). Afinal Tolstoi e a felicidade ainda ressoam no grande inconsciente comum, ansioso de receber lições de desgosto. A felicidade dos outros pode soar-nos muitas vezes ridícula ou insignificante, enquanto a tragédia (coisas más sucedendo a boa gente) deixa sempre marcas permanentes.

Das três peças gémeas de Ibsen, só nos lembramos de Hedda Gabler porque é a única que se mata. Godard sabe-o muito bem, e trata de matar todos os protagonistas que pode, enquanto Hal Hartley, nos tempos de aluno aplicado, não tem coragem. Por isso lhe agradecemos. E por isso nunca o havemos de perdoar.

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