Monday, January 01, 2007

Töpfferianas 1

Crumb e o sonho americano
A fotografia mostra o pai com um sorriso que ele compara ao dos empresários japoneses afectados por uma doença de simpatia artificial. Quando chegava a casa o sorriso desaparecia, a severidade nipónica não.
Robert não será, para usar o título que Sartre consagrou a Flaubert no seu último livro, num esforço de dez anos, o “idiota da família”, mas suspeito que o génio fosse o irmão mais velho, Charles, o rapaz desajustado que vivia dentro de folhas de papel.
Enquanto chefiou o clube familiar de banda desenhada e criou os seus livros, foi adiando o destino a que talvez estivesse desde sempre condenado. Quando no fim da adolescência os desenhos começaram a ser invadidos por teias gráficas cada vez mais densas, contaminando qualquer forma de leitura, anunciavam-se já as algemas que construiria para si próprio, em ruptura interior com o mundo. Os bonecos delicados e infantis (a “ilha do tesouro” e o recalcamento homossexual) desapareciam para dar lugar a textos enormes, e depois apenas manchas ilegíveis de uma linguagem que só ele conhecia. Nesses cadernos é a sua tragédia pessoal que se oferece, opaca e silenciosa, na forma de linhas contínuas como registos de um osciloscópio psicótico, finalmente quebrado por anos de idílio familiar.
Os impulsos homicidas que lutava por dominar (a vontade de ser castigado pelo pai, e outros regalos edipianos) e confessa a Robert no documentário têm outra leitura perversa: enquanto vegetava num retiro de fármacos e neurastenia matriarcal, o irmão crescia cada vez mais como celebridade, numa espécie de catártica apropriação irracional e psicadélica (as drogas mostraram o caminho…) dos mesmos episódios traumáticos que o paralisaram. Robert é o espelho rasgado e impossível, um insuportável usurpador de futuros.
Queixa-se de falta de estímulos exteriores, que de qualquer modo não procura, fechado há 30 anos na sua casa-fortaleza, como um triste hikikomori de meia-idade, rei boçal no seu país inanimado. Sobre os hikikomori um investigador americano confessava a perfeita estranheza do fenómeno para um ocidental. Qualquer pai americano atravessaria a porta e, melhor ou pior, lidaria com o problema. No Japão, a formalidade familiar, a rigidez emocional e um particular sentido ético quase tornam naturais situações de isolamento profundo ou doentio. É raro ver duas pessoas tocar-se num filme japonês, ou presenciar contacto físico assumido em público. É uma reserva que parece estender-se às próprias gravuras eróticas, onde corpos quase sempre ainda vestidos se apertam em normais acrobacias de penetração separados por uma membrana de tecido, que parece garantir qualquer forma de integridade inviolável, de classe e condição.
Também o filho de Robert fala da incapacidade do pai tocar, de ser emocional e afectuoso. Provavelmente é também a essa herança paterna que Robert deve o sucesso, e seguramente não o impede de ser, para alguns (como Chris Ware) o “maior artista do mundo”.
Quanto a Charles, se fechou a porta foi por temer a cura mais do que a doença Finalmente queimou as folhas que já não o protegiam senão da penúria e partiu.

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