Sunday, November 05, 2006

No Museu 2

A Bíblia de Bruegel
Tempos conturbados: Cristo despromovido, clérigos vilipendiados, monarcas reactivos, muito sangue e teologia, como de costume. No coração do conflito, o que podia um pintor fazer para ganhar a vida? Bruegel tinha distintos clientes espanhóis mas gostava pouco do folclore oficial da Igreja, dos santos e das personagens piedosas. Abordava os episódios tradicionais reformando-lhes o estatuto: numa Jerusalém flamenga, por exemplo, Cristo transportando a cruz é apenas um no meio de quinhentos homens indistintos. O assunto principal é obscurecido por uma multidão de eventos concorrentes, tão fundamentais na sua insignificância quanto o primeiro na sua autoridade.
O programa artístico é claro: duplicar em pintura o gesto bíblico da criação a partir de dentro; fabricar um exaustivo catálogo da paisagem natural e social da Flandres, real ou imaginada.
Marcado pela experiência italiana e por uma bulimia descritiva, Bruegel compôs imagens de uma natureza sempre imponente, só marginalmente perturbada pelo homem, que surge como adereço agitado de loucura e desordem na mancha edénica.
Não há um centímetro de sossego nos seus grandes planos históricos; tudo vibra de movimento e pormenor, de escrupulosa intenção; e os maiores anacronismos sucedem com a força dos próprios evangelhos. A matança dos inocentes sob o olhar vigilante dos militares espanhóis acontece debaixo de neve, tal como a Adoração dos Magos; João Baptista prega a dezenas de camponeses flamengos, provavelmente contra a impostura de Roma; Babel cresce em Antuérpia com engenharia contemporânea; a conversão de S. Paulo transforma-se em súplica ao duque de Alba.Os jogos, os lugares, medos, costumes e rostos truculentos desse tempo e território são o teatro exclusivo das suas pinturas religiosas, e Bruegel olha para os seus conterrâneos, por vezes ridículos ou pitorescos, como os legítimos actores de um texto recuperado para a esfera íntima de cada um. Para ele é esse o único milagre

0 Comments:

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home